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De volta a Rua Moraes Barros 447 (Vavá, F66)

25/02/2017 - Por evaristo marzabal neves
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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(atendendo convite do Conselho de Repúblicas para a edição de “República: A Escola da Vida”, Edição de 2002)


Evaristo M. Neves (Vavá F-66)

 

Quarenta anos são passados desde que em maio de 1962, dez estudantes de agronomia (recém ingressados), muitos egressos da Pensão da Dna. Lourdes, lá no alto da Rua Boa Morte (perto da Estação da Paulista), resolveram constituir uma Republica. É neste ponto que, na busca por uma moradia, se estabelece um dos fundamentos na constituição de uma república: a formação de um time, uma equipe afinada e cooperativa.


Esta busca pela formação de um time é uma das lembranças agradáveis de minha vida universitária. Tendo apenas uma irmã, nove anos mais velha, é de se imaginar quão privilegiada foi minha infância na minha terra natal (Lins, SP), tendo meu ambiente e quarto próprios.

Eis que, num velho casarão da R. Moraes Barros, 447 (entregue em fins de 1966, quando a maioria estava formando, a pedido do proprietário para construção de nova residência) surgia a “Viúva da Colina”(contrapondo à “Noiva da Colina” apelido carinhoso da Cidade de Piracicaba, com seu famoso “véu da noiva” no Mirante), moradia onde vim a repartir um quarto (9 metros quadrados, no máximo), um guarda-roupa, uma mesinha, com dois outros colegas. Foi neste “aperto de gente” e novo estilo de vida que vingou fortes laços de amizade, duradouros e firmes (fui padrinho de casamento de dois “viúvos” e um deles foi meu também, e sou padrinho de batismo de um filho de um outro “viúvo”). Bastava um espirrar e os outros dois já estavam gripados. Muita solidariedade, pois se doente ficava, lá estava um ao seu lado. “Um por todos, todos por um”.

Vez por outra passo na R. Moraes Barros (a residência construída no velho casarão tem o número 449, sinalizando que 447 foi exclusividade da “Viúva da Colina”). Aí ocorre uma regressão no tempo, um “volta ao passado”, trazendo saudades dolentes. “Um dia vestido, de saudade viva, faz ressuscitar... sentimento ilhado, morto e amordaçado, volta a incomodar” e me vejo, quarenta anos atrás, com os meninos da república, “jogando conversa fora” daquelas de “derrubar lagartixa de parede”. “Tempo bom, que não volta mais”, saudades tô ficando pra trás. E tome aprendizado.


A vida em república é rica em aprendizado e para quem sabe separar o joio do trigo, traz tarefas importantes e lições de casa para o “day after” no mercado de trabalho.

Na república aprende-se a riqueza do convívio social e repartição. Quem tinha toda a retaguarda dos pais, de vida simples, mas o conforto de um quarto individual, começa a repartir com dois colegas um espaço apertado e a ter que conviver com outros sete, com características diferentes, vindo de grandes cidades ou de comunidades rurais, corintianos, palmeirenses ou tricolores; católicos, batista e ateu; louros, brancos e morenos; altos (os dois pivôs do time de basquete da Atlética – Dama da Noite e Alemão) e baixos (baixinhos mesmos), convivendo, diariamente, sob o mesmo teto. Um só chuveiro, uma privada, um congestionamento incrível em quatro metros quadrados e uma grande mesa comunitária (comportava 12 pessoas nas refeições), na única sala da casa, servindo a mesma comida para todos.


A vida em república é rica em aprendizado. O tecido social reúne a convivência e a conveniência da adaptação. Nenhum ser humano é uma ilha por inteiro, isolada. Ele convive com outras pessoas. Por sua vez, a conveniência mostra que você tem que se adaptar ao ambiente, pois se for individualista, arrogante e ensimesmado é dispensado (consensualmente) e orientado a morar sozinho ou procurar um ambiente adequado aos seus costumes. Espírito de equipe (nem sempre agindo com discernimento), companheirismo e forte amizade são laços que se estreitam numa república. Nunca fomos santos, também não bandidos. Éramos apenas jovens que amavam os Beatles e os Rolling Stones, Roberto Carlos e a turma da “jovem guarda”. O que vocês querem e esperam de jovens de 19, 20 anos. Os dez que lá habitaram (principalmente nos anos 65 e 66, fim do curso) estabeleceram os ajustes indispensáveis a convivência, conveniência e convergência para uma amizade perene. Prova disso: alguns socorros anos depois.

No tempo da ESALQ, quantos fins de semana em casa ou sitio daqueles que moravam perto. E noite à dentro, papos alegres e descontraídos. Ah! Que saudade nos dá.

Na república aprendi o que é vida comunitária e em sociedade. Quer queira ou não, a república tem a característica de ir-se ajustando ou ajustando ou reunindo pessoas próximas ou iguais nos seus anseios. Ela é seletiva ao estabelecer sua cultura predominante. Aprende-se muito em termos de tolerância e compreensão, mesmo nas discussões mais fervorosas.

Passados quase 40 anos, onde estão os “Viúvos”, velhos companheiros? Se foram tantos janeiros. Dois faleceram (Lampião/Araraquara, ainda no tempo de república num desastre, e Sorobinha/Marilia e Bariri) e os outros estão por este mundo, tão distantes geograficamente, mas tão próximos da ESALQ, pois sei onde estão (Brasília, São Paulo, Presidente Epitácio, Mirassol, Lins, Penápolis, Osasco) e os dois que aqui ficaram, contando comigo. Uns aposentados, outros remediados, outros lutando ainda, quebrando a cara, mas vivendo, conflitando, e tentando entender as marcas da república que ensinou que a vida é convivência, conveniência e convergência para uma amizade sólida e fins profissionais. Alguns ficam a pensar: onde errei?


Tempos bons que não voltam mais. Estudar, estagiar (alguns) e passar de ano. Bailes, namoros, esportes e inter-reps. CALQ, quase todas as noites (a maioria das repúblicas ficava na cidade e a “Viúva” a quatro quadras do Centro Acadêmico e aí, quanta saudade do Titico, o Seu Roque de nosso tempo) e a contar ainda com o bondinho, todos os dias, com ponto atrás da Catedral (carro quase ninguém tinha no início dos anos 60). Ficava-se muito tempo em Piracicaba, pois no 1o. ano tinha-se aula aos sábados de Matema. Missa das 10 horas aos domingos na Catedral, e “footing” domingueiro à noite, após a sessão de cinema no Politeama junto à Praça ou no Broadway, na São José. Bar do Haiti e o famoso “cachorro quente” do Grill Dog, serestas com os Nelsons Gonçalves e Silvios Caldas da época, os cantores de banheiro, e conversas sem fim. De vez em quando, uma esticada ao Rio Piracicaba, cinco quarteirões abaixo (no inicio dos anos sessenta era pouco poluído, podia-se dar umas braçadas em frente ao Clube de Regatas Piracicabano) e os “rachas” no estádio “Dr. Hugo de Almeida Leme” (nosso Diretor na época), uma área de 24 metros quadrados, atijolada, no quintal da república (quantos tampões de dedão foram pro espaço pra contar histórias dos clássicos inter-quartos). Gozado, sobrava tempo para tudo e tudo era pertinho. No balanço, para quem tinha 19, 20 anos o lema parecia ser um “deixa a vida me levar... vida leva eu... de mansinho, o negócio é deixar rolar, aos trancos e barrancos, lá vou eu”. E, ainda tinha-se tempo, para um trabalho de extensão de Alfabetização de Adultos, que o CALQ colaborava.


Mas o tempo passa. Pena! Tão passageiro e fugidio, lá se foi o encantamento da vida juvenil. Tempos depois, algumas frustrações, desilusões e desencantos para alguns, e realizações para outros. Ao vivenciar o velho casarão de nossa juventude, nos esquecemos que a vida aí fora não é o da república (está aí uma das razões de meu entusiasmo e motivação pelos estágios supervisionados, vivencial e profissionalizante, como antecipação do que vem depois). Alguns imaginaram um mundo cor de rosa, um ambiente róseo republicano, mas o ambiente fora é muito hostil. Para alguns que não se prepararam para este outro mundo pós-ESALQ, vivem se lamentando: eu era feliz e não sabia; achei que a vida afora era uma extensão e perenização da república. A realidade, dura realidade, é que o mundo ai fora jamais será igual para todos. São muitos os perigos desta vida.

Quarenta anos são passados, desde que em maio de 1962, dez meninos criaram uma república: “Viúva da Colina”. Tenho certeza que os “Viúvos” quando retornam para nossos encontros, a cada cinco anos, ao passar pela Moraes Barros (passagem obrigatória), no imaginário visualizam o velho casarão do 447, de tão rica convivência e, com tristeza, traz reminiscências, lembrando Lupicinio Rodrigues, de nossa época, e cantarola para os seus botões: “Felicidade foi-se embora e a saudade em meu peito ainda mora... o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar... Felicidade foi-se embora... Ah! Sonhos juvenis, aonde é que ficaram os ideais arquitetados em torno da grande mesa da sala da “Viúva”, os planos de sucesso profissional rápido e duradouro de alguns? Tantos sonhos na  Moraes Barros para somente alguns chegarem lá, alcançando seus objetivos. Ah! Se pudéssemos voltar 40 anos atrás, repensá-los e  refazê-los.

Vavá

 

Obs. Como no mundo ninguém é igual ao outro, “cada um é um universo diferenciado”, este depoimento é pessoal e pode não ser endossado pelo outros “Viúvos”. É um pouco de minha história republicana, uma revelação de meus sentimentos, de minha convivência social e do aprendizado colhidos na minha saudosa “Viúva da Colina”, que sobreviveu apenas seis anos. Nós formamos a república e, praticamente, com ela, finalizamos nosso ciclo universitário e a fechamos. “Viúvos”, um muito obrigado! Não imaginam quanto aprendi com vocês.

 

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