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A Escola da vida para além da ESALQ (Grogue; F82)

19/07/2020 - Por paulo henrique groke junior
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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Para começar a contar essa história é preciso um pouco de contextualização.


Ingressei na ESALQ em 1979, num tempo de menos alunos, de relações mais próximas, com os professores mais velhos usando guarda pós com o nome grafado no bolso.


General Figueiredo assumindo com claro enfado. Nem ele, nem nós, aguentávamos mais.


Sandálias de couro, bolsas de pano à tiracolo, botinas de bico fino compradas na Selaria Record e cintos de vaqueiro se misturavam num mundo harmonicamente heterogêneo.


Caminhar nos eixos da Avenida Independência ou das ruas Santa Cruz/Carlos Botelho significava carona certa. Algumas vezes, mesmo que a gente não quisesse.


A Rua do Porto, de frequência moralmente duvidosa, era apenas para iniciados.


Na Escola, o democrático banco verde até hoje no mesmo lugar, no bolsão do estacionamento em frente ao velho Rucas, recebia os que encerravam a jornada de estágio ou aula e também aqueles que simplesmente as matavam. Cabia a quem fosse chegando ir buscar a cerveja no saudoso bar do Valdir, dentro do Rucas. Os cascos vazios eram alinhados debaixo do banco. Cabia ao último a sair levar as garrafas ao bar. Era um ambiente comportado. Apenas um refresco para o fim de uma tarde de calor.


O CALQ, referência maior de aglutinação, festa, trabalho, discussão técnica e política. Mas também havia quem fosse para lá quase todas as noites apenas para jogar sinuca, tomar cerveja, comer a coxa de frango frita pela dona Judite e prosear com "seu" Roque, o que certamente contaria créditos para a pós graduação da vida.


Repúblicas atuantes, de espírito vigoroso e que incluíam no combo da convivência festas, caixas de cerveja barata, um baralho de truco e uma porção de irmãos para toda a vida.


Fantesão "roots", xispadas com apoio logístico da rural da doutora Sandra Rural, noites na delegacia, banho no chafariz da praça.


Invasões às repúblicas coirmãs que, apesar de alguns incômodos físicos e psicológicos gerados, significavam uma clara declaração de amor.


Estágios que, por conta da exaustão física e mental, das bolhas nos dedos, dos carrapatos e das "perdas" dos períodos de férias, criaram em nós uma espécie de Síndrome de Estocolmo acadêmica, nos fazendo admirar pelo resto da vida os nossos orientadores.


Baile de Formatura no Prédio Central com vista privilegiada para o gramado, com o mausoléu de Luiz de Queiroz e de sua companheira Ermelinda em primeiro plano. Na sacada do imponente prédio, mulheres de vestidos longos e homens de smoking tendo nas mãos copos de whisky e cigarros, como cenas de clássicos holliwoodianos. Nos corredores do Prédio um trânsito lento, como se desejássemos cumprimentar cada um dos velhos colegas presentes, estampados no quadro de cada turma que já havia passado pela Escola.


Deslumbrante mundo que impregnou minha memória e moldou a minha vida.


Um corte para o ambiente das aulas...


Cursando a disciplina de Entomologia Florestal, ministrada pelo prof. Evoneo, tive como trabalho pesquisar sobre vertebrados predadores de saúva. Não estranhem, mas eu era apaixonado pelo tema.


"Por onde começo, Evoneo?" A resposta: "procure o professor Mariconi, no Departamento de Zoologia."


Era um mundo no qual todas as informações estavam em uma base física ou cerebral, no qual a aquisição de conhecimento pressupunha contato com pessoas e livros físicos.


E lá fui eu conversar com o grande mestre Mariconi, verdadeiro mito.


Em uma sala ampla com paredes revestidas de estantes com periódicos e livros, lá estava ele sentado atrás de uma escrivaninha clássica, vestido um guarda pó daqueles com o nome grafado no bolso, empunhando uma caneta de pena. Olhar baixo e cândido.


"O que você querrrr, bixo?", com o mais marcante e peculiar sotaque piracicabano que eu já havia escutado.


Expliquei a natureza do meu trabalho e ele, sem pestanejar, mas ainda com o olhar baixo, fez alguns movimentos com o braço apontando para seções da sua biblioteca onde eu encontraria as informações que precisava.


Em um universo de centenas de publicações peguei três ou quatro livros e periódicos e parei na sua frente aguardando o seu ok, imaginando a existência de um rígido processo de controle sobre o material que sairia daquele ambiente de preciosidades técnicas.


Ele, em momento algum, tirou os olhos de algo que estava escrevendo.

Com as publicações debaixo do braço, parei em frente a sua mesa esperando qual seria o próximo passo. Na falta de um olhar direto e num momento de angustiante silêncio, tomei coragem e embalei a pergunta: "Professor, o senhor não quer anotar os livros que estou levando?"


Finalmente levantando a cabeça e expressando um sorriso largo, com extrema doçura, engatou a resposta: "Porrrr acaso o senhorrrr está pensando em não me devolverrrr?"


Pensem num cara agradecido pelas oportunidades de aprendizado que essa Escola me ofereceu, em todos os sentidos. Esse cara sou eu.

 

*Paulo Henrique Groke Jr. (Grogue; F82), Sócio Mantenedor e Membro do Conselho Consultivo da Adealq, Ex Morador da República Kpixama é também diretor superintendente do Instituto Ecofuturo 

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