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Clóvis (Pinduca F68)
13/12/2015 - Por marcio joão scaléaAtenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

Este era o seu nome, mas todos o chamavam por Cróvis,
inclusive ele próprio. Mecânico de aviação, daquela aviação pequena, quase
"fundo de quintal", com passagens por inúmeros Aero Clubes de todo o país.
Magnetos, carburadores, velas, muflas e remendos com lona e dope eram sua
especialidade. Alem de mecânico de aviação ele dizia ter sido palhaço, atuando
em diversos circos de periferia, alem de seresteiro inveterado.
Alcoólatra assumido, bastava encerrar-se o expediente do dia
para que uma sede incontrolável o acometesse, fazendo-o tomar umas e outras.
Teriam sido as desilusões do seresteiro que fizeram surgir o palhaço e
alcoólatra?
Três passagens marcaram a convivência do Agrônomo com
Cróvis, durante os períodos em que trabalharam juntos.
A primeira passagem foi lamentável, desdobramento de uma
bebedeira. Era comum que o Cróvis tivesse diarréias, conseqüência das esticadas
noturnas, regadas a muita cachaça. Naquela manhã ele estava trocando um "sandow"
(nem sei se existe essa palavra!) de um PA-18, quando tudo aconteceu. Sandow, a
propósito, é um tipo de amortecedor usado em pequenos aviões, composto de uma
estrutura de aço em que são instaladas duas borrachas muito resistentes, como
elásticos, que precisam ser esticadas e montadas sob forte pressão. Fazer essa
troca em uma oficina padrão, bem equipada, já não é uma coisa fácil. Fazê-la
numa tosca bancada sobre tambores, com ferramentas improvisadas, é um pesadelo.
O Agrônomo e Cróvis forcejavam para encaixar a segunda borracha, quando veio a primeira
cólica. Que foi "segura", pois ele não podia largar o que estava fazendo. Logo
depois veio a segunda cólica, também evitada, mas levando-o a sugerir que parassem
um pouco, para descansar. Na terceira ele largou tudo e correu para trás do
hangar, para se aliviar, mas não deu tempo. Ao se agachar, ainda arregaçando a
parte de cima do macacão, o primeiro jato foi mais rápido, escorrendo pela gola
do macacão, emporcalhando-o por inteiro. O Agrônomo teve que voltar à cidade
para buscar uma troca de roupa, para que o Cróvis pudesse continuar seu
trabalho, depois de se lavar mal e porcamente numa torneira. Apesar do fedor,
que persistiu o dia todo, ele galhardamente trabalhou como se não houvesse
nada, e só depois do jantar, após umas duas cachaças é que ele mesmo
ridicularizou o fato, dizendo que merecia aquilo que havia acontecido.
A segunda passagem também foi reflexo de uma bebedeira, só
que com risco de acidente, podendo se transformar numa tragédia. Bem cedinho,
resto de neblina na baixada do Rio Tibagi, o Agrônomo e um piloto retiravam
gasolina de um tambor, enquanto o Cróvis fazia o PA-18 pegar : punha calços nas duas rodas, dava três
bombadas na manete de aceleração, que era deixada a 1/3 do curso, ligava o máster
e deixava a chave no magneto esquerdo; rodeava a cabine, colocava as mãos na
hélice e dava forte impulso para baixo, para fazer o motor girar e ....nada de
pegar. Repetia a puxada na hélice e nada! Na terceira, cabeça já quente, mais
duas bombadas na manete, novo impulso e vruuuummmm : o motor pegou, só que com
aceleração total, a manete tinha sido deixada a 100%, coisa que a ressaca de
uma noitada mal dormida explica. Para escapar da hélice, Cróvis se atirou ao
chão, levantou-se e agarrou o avião pelo montante direito (barra de aço que suporta
a asa), o que levou o avião a "engrenar" uma curva fechada para aquele lado,
girando sobre uma roda. Ao ouvirem o ronco do motor acelerado e os gritos do
mecânico, o Agrônomo e o piloto correram e conseguiram desacelerar o motor,
parando o avião. Foi só um susto, mas que poderia ter virado uma desgraça.
Mas a terceira passagem, a mais marcante de todas, foi
quando o Agrônomo aprendeu a letra de uma música, verdadeiro hino, decorada
verso a verso, longamente repetidos por Cróvis, nas intermináveis horas
passadas esperando o vento amainar para poder começar a fazer as aplicações dos
inseticidas no trigo :
"Tu és,
Divina e graciosa, estátua majestosa,
Do amor, por Deus esculturada,
E formada com ardor,
Da alma da mais linda flor,
Do mais ativo olor,
E que na vida és preferida
Pelo beija-flor..."
Cróvis, seresteiro inveterado, palhaço triste, teria tido
sua Rosa?
Marcio Joao Scaléa (Pinduca F68) é Engenheiro Agrônomo ex morador da Republica Mosteiro