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GERAIS (Pinduca F68)

19/05/2016 - Por marcio joão scaléa
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GERAIS

 

O Pesquisador chegou a Balsas bem depois da meia noite, sozinho no táxi pois os dois companheiros haviam ficado pela estrada, na casa de parentes há muito não visitados. Em poucos minutos foi apresentado à cidade : mercado, praça da Matriz, Banco do Brasil e o rio. Do outro lado do rio o bairro novo dos paranaenses e gaúchos. Perguntado sobre hotel, o motorista afirmou que a essa hora só a pensão da D.Emília, a melhor da cidade, tendo até um apartamento no andar superior, a meia quadra da praça, coisa fina para o doutor. Tantos elogios já o deixaram desconfiado, mas era o que tinha disponível, não havia como discutir.

 

D.Emilia era uma velha senhora, bem velha. Gorda, de camisola, parecia um fantasma se arrastando na obscuridade da sala da pensão, toda alvoroçada pela chegada do táxi que lhe trazia mais um cliente tão tarde da noite, ainda por cima doutor. Com um safanão acordou um negrinho que dormia num colchão no canto, e o mandou mostrar a "suíte", no alto de uma escadinha que subia íngreme do meio da sala, desculpando-se por não ir ela mesma, pois as pernas não ajudavam mais, coisas da idade. A "suíte" era um catre com colchão de palha e um banheiro sem porta, apenas com um lençol velho disfarçando a entrada. Vaso sem taboa de um lado, pia do outro, quase se sobrepondo um ao outro, de tão pequeno o cômodo. Entre os dois, por cima, um cano plástico, e no chão umas folhas de jornal dobradas, parecendo cobrir algo. Acertado o preço, o negrinho ajudou o Pesquisador a subir com as bagagens, verdadeira proeza. Assim como proeza de engenharia parecia ser aquela "suíte", que oscilava aos passos do ocupante. Aberto o chuveiro, só aí o Pesquisador viu que o jornal no chão era para cobrir o ralo, que assim que foi descoberto passou a exalar um fedor horrível, o cano subia direto da fossa, sem sifão. Corpo ensaboado, ele começou a sentir como se algo lhe subisse pelas pernas, abrindo os olhos entre a espuma para ver dezenas de baratas, enormes, que afloravam pelo ralo descoberto : enquanto umas se espalhavam pelo piso, outras lhe subiam pelas pernas. Não sabia o que era pior, se o sabão nos olhos, se as baratas nas pernas ou o ruído surdo dos insetos estourando ao serem pisoteados pelos pulos que começou a dar. Longos anos de estrada haviam-lhe ensinado : havaianas para o banho e inseticida para o sono eram companheiros constantes na bagagem, e graças a eles sua noite não foi pior.

 

Dia seguinte mudou-se para um hotel, simples mas limpo e confortável, o que lhe fez ver a cidade com outros olhos. Contactado o corretor, ex garimpeiro, ele lhe disse que a fazenda que iria cair como uma luva nas pretensões dos compradores ficava a cento e poucos quilometros ao sul da cidade, na divisa com Tocantins, no chamado "Gerais de Balsas", pequenas chapadas em altitude, solo muito plano e de fácil mecanização. Pertencia à viúva de um político local, que a estava vendendo barato, sendo totalmente legalizada e escriturada. Visitas ao cartório, pedidos os documentos, certidões centenárias, formal de partilha, planta com memorial descritivo, tudo o que o advogado de Dourados sugerira, e que ficaria pronto em três a quatro dias. Neste espaço, pensou o Pesquisador, vou até a fazenda para ver, fotografar e tirar umas amostras de solo.

 

Caminhonete F100 alugada, motor a gasolina, motorista, corretor e mais um guia a bordo, começou a viagem, prevista para umas oito horas até um ponto de pouso, mas que demorou catorze. Estradas não havia, eram caminhos de barro e valetas descomunais, por causa do período, fim da estação chuvosa. A cada légua uma atolada, que para ser vencida precisava ser "estivada" com troncos de árvores cortados no machado.

 A chegada ao sítio do Sr.José Ribeiro já foi com noite escura, primeiros contactos à luz da lamparina. Enquanto os demais expedicionários dirigiam-se ao rio para um banho, o Pesquisador manteve animada conversa com o proprietário do sítio, já que uma entrada noturna num rio estranho, friagem no ar de maio, não faziam seu estilo. O Sr. José era personagem digna de nota. Sua família vivia ali há décadas. Só de dados de chuva anotados em pluviometro fornecido pela SUDENE, ele tinha quase vinte anos, informação muito valiosa. O sítio lhes fornecia quase tudo : as únicas coisas que traziam da cidade era o sal e o querosene. O resto, do café ao algodão, para tecer suas redes e roupas, tudo saía da terra. Assim como o jantar que lhe foi encomendado, arroz e galinha. Jantados, limonada adoçada com rapadura para amenizar a cachacinha pura, veio o sono, e novo problema : todos tinham sua rede, menos o Pesquisador, que não teve outra alternativa a não ser dormir na cabine da F100. Todos alojados, o Sr.José soltou os cachorros, vigias da propriedade, alertando : estes animais são muito bravos, não facilitem. Madrugada, cabine gelada, a vontade de mijar era avassaladora, mas as feras, ao menor ruído, rodeavam a F100, como que sabendo que dali sairia a sua presa, mais cedo ou mais tarde, pois todos os outros dormiam em suas redes no vasto alpendre da casa. A solução foi mijar pela janela, cuidando para que algum cão mais afoito não o pegasse de surpresa.

 

Dia seguinte, mais umas seis horas até chegar à fazenda, pequena chapada de 28.000 hectares, beira do ribeirão do Peixe de um lado e paredão abrupto de mais de trezentos metros para baixo, divisa com Tocantins, do outro. Fotos tiradas, recolhidas as amostras de solo, volta até o sítio, para novo pernoite. Só que desta vez dormindo com rede e coberta de puro algodão, ali plantado, colhido, fiado e tecido, comprados do Sr.José Ribeiro, com seu monograma bordado, relíquias do Sítio Ribeiro, até hoje guardadas.

 

Na volta para casa, negócio da fazenda apalavrado, só faltando uma reunião com os demais parceiros do grupo para definir tudo, a notícia de primeira página no jornal distribuído a bordo do avião :

"REFORMA AGRÁRIA : GOVERNO FEDERAL GARANTE A IMPLEMENTAÇÃO        IMEDIATA "

 

Adeus definitivo ao sonho de ser fazendeiro no novo Eldorado, o Gerais de Balsas. Quem iria comprar terras e esperar para abrir, em tempo de politicagem e demagogia, com exércitos de sem terra prontinhos para as invasões?

Marcio João Scaléa (Pinduca F68) é Engenheiro Agrônomo ex morador da Republica Mosteiro

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