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Luzes da Cidade (Sabugo; F97)

05/04/2020 - Por emiliano ramos mellis
Atenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

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Luzes da cidade - Sabugo F97
 
(Para os tempos de Covid-19 ou não)
 
Neste final de semana a família já estava bastante sufocada face ao confinamento imposto pelos acontecimentos nas últimas semanas, nas quais seguimos à risca os procedimentos de reclusão urbana. Aliás, nada mais natural termos nos sentido desconfortáveis pela pressão do confinamento, ainda mais em se tratando de um agricolão, uma agricolona e suas agricolinhas. Para nosso feliz privilégio, pudemos fugir da cidade para o mato num movimento onde não precisamos interagir com ninguém na transferência da prole. Até no pedágio passamos batido graças à tecnologia que nos permite pagar eletronicamente. Portanto zero exposição na transição de ambiente. Mas ainda assim a sombra do caos atual na cidade nos assombrava silenciosamente.
 
Uma vez no mato: portas escancaras, cachorrada correndo solta, longas caminhadas da família pelos carreadores, e nossas peles respirando alegremente e sintetizando vitamina D. Voltamos a nos preocupar com protetor solar. Que maravilha!!!
Criançada reclamou dos carrapichos grudados, a churrasqueira não parou de soltar comida, a gente encontrou carrapatos nos cachorros, a família apanhou frutas no pomar e o vento frio do final da tarde de outono afugentou a gente pra dentro do alpendre. Que maravilha!!! Esquecemos da pressão da cidade. Mas ainda assim a sombra do caos atual na cidade nos assombrava silenciosamente.
 
Depois de um dia inteiro de esquecimento dos problemas da cidade (nós adoramos isso no mato, e este é o principal motivo pra estarmos no mato), o sol baixou e a coisa se aquietou. Depois de alguns jogos de tabuleiro com a família, resolvi fumar um paiero sozinho no escuro no alto da colina, tomando minha cervejinha. Só eu e eu. Quietinho, pra pensar na vida. Aquela coisa de caboclo. Que maravilha!!! Mas não imaginava que caos da cidade ainda me assombrava silenciosamente. Estava eu começando a minha viagem mental dentro do meu próprio "imbiguim" quando percebi que meu corpo estava virado na direção da claridade da cidade ao longe no horizonte. Igual à minha infância quando ficávamos na morro da roça olhando as luzes cidade imaginando as coisas maravilhosas que estavam acontecendo enquanto a gente estava quase pra escutar os gritos ordenando a gente pra lavar o pé antes de dormir, na hora em que as vacas dormiam. Foi nessa hora que minha jornada mental relaxante sumiu. Fiquei brabo comigo mesmo. Entrou na minha cabeça uma onda de questionamentos: porque eu estava com o corpo virado pra cidade? O que me fazia olhar pra lá? O que daquelas luzes era mais importante do que meu momento no mato? Se meus pais dependem da lavoura de café e eu vivo dos insumos para as lavouras de cereais e fibras, porque meu corpo ainda está virado paras as luzes da cidade? Será que existe algum feitiço? Será que eram essas luzes que deslumbravam os romanos na cintilante Lutécia(Paris)?
 
E percebi que parte disso é o meu/nosso condicionamento. O movimento que transformou a relação populacional brasileira rural/urbana nos últimos 50 anos de 50/50 pra 10/90, assim como ocorreu ainda mais pronunciadamente nos países desenvolvidos, tem muita culpa no cartório nesse condicionamento. Passamos a pensar que o caminho certo é este. Estive na Europa no final de 2019 e o agricultor por lá está mais abandonado que obra de prefeitura depois da eleição. Não quero entrar aqui naquele coro com veias do pescoço saltadas vociferando contra este movimento, até porque já aconteceu. Acabou. As pessoas de maneira geral não querem viver uma vida da roça. Ninguém da nova geração quer viver no mato em nenhum lugar do mundo. 3 ou 4 caiporas querem. Mas nesses momentos de crise, temos a certeza de que a roça é o lugar seguro. Economicamente é ela que segue firme e forte também. Socialmente ela continua gerando os 10% de empregos na roça, e mais 20%-30% indiretos da cadeia: suprimentos, bancos, indústrias, serviços, etc. O agro nos trás a segurança alimentar para nos abastecer, estabilidade social empregando e propulsão econômica para fazer nossa roda girar. Só sei que bem no meio desses pensamentos, meu corpo se virou para o outro lado, pra um pasto no escuro na direção oposta. E segui firme olhando pro lado escuro do horizonte e pensando, orgulhoso de estar prestigiando o que acredito que devemos prestigiar, cumprindo missão vitoriosa. Valorizando o escuro do mato que de dia faz nosso país acontecer. Boi, soja, milho, algodão, café, laranja, eucalipto, arroz, HF, feijão...

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