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Manual de sobrevivência para as festas de final de ano para pecuaristas e coligados
22/12/2016 - Por sergio medeirosAtenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.
As celebrações
familiares deste esquizofrênico ano de 2016 estão logo ali depois da esquina e,
com elas, junto com os exageros gastronômicos, com a farra etílica e a alegria
do reencontro de pessoas queridas, vêm as perguntas indesejáveis, as ideias
pré-concebidas e as certezas absolutas formadas pela numerosa categoria de
"especialistas" grau "www" sobre tudo, inclusive pecuária. Como a pecuária tem
muitos detratores bons na guerra da (des)informação, o bombardeio é constante.
Enfim, é algo que faz parte do pacote de fim de ano.
Neste texto,
brevemente, vamos falar sobre alguns assuntos polêmicos que envolvem nosso
setor de maneira a subsidiar todos aqueles que nele militam e, assim, ajudar a
ter uma interação mais produtiva com "urbanoides" que conhecem o campo só pela
televisão nas manhãs de domingo. Para tal, criamos alguns personagens
imaginários do tipo que, provavelmente, o leitor terá que, entre uma garfada no
tender e um gole no "prosseco", enfrentar em breve:
1)
A tia que só fala em regime: Essa tia, irmã da sogra (claro!), naturalmente
é bem gorda e provavelmente tem um daqueles nomes hoje em extinção. A Tia
Ofélia, então, vai interpelá-lo com algo como "Nossa, porque você trabalha com
boi? Carne engorda e dá câncer!". Nesse momento, é muito importante que você
mantenha a calma e, especialmente, não caia na tentação de responder: "Tia...o
boi, ao contrário da senhora, tem partes com bem pouca gordura!". Muito pelo
contrário, com amor, deve-se esclarecer à
Tia Ofélia que, o que engorda é comer mais energia do que gastamos, exatamente como
ocorre nas festas de final de ano. Em seguida, podem-se dar boas notícia a ela.
Primeiro, que a carne é um excelente alimento para ser usado em regimes, pois,
comprovadamente ajuda a pessoa a suportar a restrição alimentar e, portanto,
não desistir da dieta. Em segundo lugar, quanto à questão da ligação de carne e
câncer, que ela é muito fraca. É provável que, neste momento alguém lembre que há
pouco mais de um ano, o IARC (Agência
International de Pesquisa sobre o Câncer) fez o alerta que "o consumo de 50
g de carne processada por dia
aumenta a chance de câncer colo-retal em 18%", o que, na imprensa, virou a
manchete "Carne é cancerígena". A primeira questão a ser esclarecida é que essa
pessoa não tem 18% de chance de ter câncer, mas que ela tem 1,18 vezes mais
chance de quem não come. É o chamado "risco relativo". Em comparação, o risco relativo
de quem fuma ter câncer de pulmão é 20 vezes maior do que um não fumante, ou
seja, 1900% maior. Nessa decisão, o IARC colocou carne e cigarro na mesma
categoria. Tive a oportunidade, na reunião desse ano da Sociedade Americana de
Ciência Animal, em Salt Lake City, de assistir a duas palestras em sequência com
especialistas que votaram para decidir se o IARC iria ou não colocar a carne na
lista de cancerígenos. O primeiro, que trabalha para o governo americano, Dr. David
Klurfeld, mostrou que a grande maior parte dos dados não suportava haver
ligação entre carne vermelha e câncer. Além disso ele explicou que, quando o
valor calculado do risco relativo é menor do que 1,2, de praxe, ele é desconsiderado.
Essa margem de segurança existe, pois a maior parte dos dados tem base em
estudos das populações (estudos epidemiológicos) ou estudo de intervenção na
dieta, que são muito suscetíveis a terem confundimentos e a falta de compromisso
dos participantes, respectivamente. Por exemplo, ele comentou que o caso da
ligação entre consumo de café e aumento de risco de doença cardiovascular,
apenas recentemente foi identificada como furada, depois que a reavaliação dos
dados considerando o efeito do cigarro demonstrou ser esse o verdadeiro vilão. A
palestra dele foi muito convincente e justificou bem porque ele votou contra a
nova classificação do IARC. A palestra seguinte foi do pesquisador belga Dr. Stefaan
Smet, mostrando a mesma fraca ligação e explicando que o IARC tem sua competência
bem estabelecida com compostos químicos, mas que nunca tinha trabalhado com
alimentos, sendo a carne sua investida pioneira. Além disso, que o grupo
reunido fez apenas uma análise de risco e não uma avaliação científica
aprofundada da questão. Que a carne vermelha propriamente não tinha dados suficientes
para ser colocada como cancerígena, mas que a processada, sim, ainda que
fracamente e com baixo risco. De maneira meio envergonhada, justificou seu voto
em função de um trabalho
cujas conclusões sobre determinados processos explicariam o risco (ou seja,
indiretamente!). Algo importante a se notar nesse caso é como procedimento foi
diferente com a carne, havendo maior rigor ao fazer o 1,18 ser tratado como se
fosse maior do que dois. Enfim, fosse outro alimento, muito provavelmente não
teria sido colocado na berlinda. O resumo
é que todo mundo pode aproveitar bem seu bife, caprichando no seu acompanhamento e no estilo
de vida que se leva. Esses fatores farão muito mais diferença para a saúde do
que comer carne de soja o resto da sua vida.
2)
O sobrinho aluno de Geografia na Federal: Eis que neto da Tia Ofélia, o Júnior, ouviu
suas explicações e aproveita para fazer algo que sempre quis: constranger um dos
cúmplices, na visão dele, da devastação da Amazônia. Ele, então, dispara: "... mas
todo mundo sabe que a floresta amazônica é derrubada para dar lugar aos
pastos!". Respire fundo, considere que essa relação é histórica e está
cristalizada na mente das pessoas, mas informe para ele que os três estados da
nossa federação que mais tiveram aumento de rebanho bovino ente 2006 e 2015 foram
Pará, Mato Grosso e Rondônia, respectivamente com 6,4%, 9,2% e 11,40%. Desses,
apenas Mato Grosso não tem todo seu
território naquele bioma, mas é onde fica quase toda "nova" fronteira
agropecuária dele. Apesar desses aumentos, entre 2004 e 2012 houve uma redução
de 2,35 mil km2 de desmatamento por ano, passando de mais de 25 mil
km2/ano para cerca de cinco mil km2/ano. Nos últimos anos,
oscilou na faixa entre 5-6 mil km2. Por conta disso, hoje, os
estudiosos falam, então, do fenômeno do "desacoplamento" entre pecuária e
desmatamento. Caso ele queira saber como isso foi possível, você pode explicar
que, por um lado a pecuária tem melhorado muito sua produtividade e, por outro,
houve bastante esforço governamental e da sociedade civil organizada na
repressão ao desmatamento ilegal. A adoção da estratégias de compra de animais
produzidos exclusivamente em fazendas estritamente dentro da lei, por exemplo,
teve grande impacto nesses resultados. Já na questão de produtividade, vale à
pena informar que, entre 1975 e 2006, a produção de carne aumentou quatro
vezes, praticamente na mesma área (na verdade, um pouco menor: 96% da área de
1975!). A tendência segue na redução da área de pastagens e melhora na
eficiência da produção. Por fim, vale à pena fazer para o Júnior mais dois
comentários: 1) admitir que, apesar do "desacoplamento", o desmatamento ilegal,
em que a pessoa põe abaixo a área de mata e cria boi em seguida, continuará
ocorrendo, mas que o boi é apenas parte do processo cujo maior objetivo é
imobiliário, isto é, vender a área e 2) que isso é um caso de polícia e por ela,
e com os rigores da lei, deve ser tratado.
3)
O cunhado, advogado, que se considera mais
sabido que o Google: Você
sempre achou que sua irmã merecia algo melhor, mas, como diz o poeta, o coração
tem razões que a própria razão desconhece! Chamado pelo sobrenome, o Cunha é um
leitor voraz de conteúdo da Internet. Por azar seu, ele chegou ao final das
suas explicações para o Júnior sobre desmatamento e, no ringue imaginário que
ele tem na cabeça, resolveu tentar colocá-lo contra as cordas levantando a
questão atualíssima do aquecimento global (AG). Ele, caprichando no tom, diz:
"...pois é, mas outro dia li que especialistas culpam o churrasco de
domingo como o vilão do AG!". Evite o
caminho de minimizar o assunto, pois, no final é uma crise que, na verdade, é
uma grande oportunidade. A bovinocultura, como qualquer outra atividade humana,
polui e tem sua parcela de envolvimento nesta questão, nisso o Cunha está certo.
Outro fato é que cada vez mais dados mostram que o AG é real e, pior, seus efeitos
têm chegado antes e mais fortes do que o previsto. Especificamente
a fala do cunhado é literalmente a manchete da Internet para um relatório que
coloca a agropecuária como a grande vilã, mas especialmente porque põe na conta
dela a emissão por mudança de uso da terra (MUT), algo que, como explicado para
o Júnior é injusto, uma vez que todas as cidades um dia foram floresta e elas
nunca pagaram essa conta da sua própria questão fundiária, ou, por outro lado,
se não houvesse boi e agricultura, haveria desmatamento do mesmo jeito. Diretamente ligado à atividade mesmo, o valor
ficaria próximo á 20% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa (GEE).
O fato é que não tem nada mais globalizado nesse Mundo do que os efeitos
climáticos. Um bom exemplo para mostrar como estamos interconectados pelo clima:
foi identificado, recentemente, que a poeira vinda do deserto do Saara, na
África, influencia na pluviosidade da Amazônia, pois partículas vindas de lá
ajudam a chover aqui! Portanto, o valor global de 13% das emissões de GEE vindos
da pecuária é onde devemos focar (e tentar reduzir). Para reduzir a emissão de
GEE, por sorte, o melhor caminho é a intensificação dos sistemas. Quanto mais
investimos em técnicas modernas de produção pecuária, menor a emissão por
quilograma de carne produzida. Aliás, essa unidade é a melhor métrica para enfrentar
esse desafio. Por uma feliz coincidência, no caso brasileiro, o aumento de
intensificação da produção aumenta a rentabilidade do produtor, ou seja, é uma
relação ganha-ganha. Mas se o Cunha pensou que as vantagens brasileiras tinham
acabado por aqui, vai mais um direto de esquerda: Como nossa carne é produzida principalmente
em pastagem, temos como bônus na intensificação um aumento de suas raízes, ou
seja, aumentamos o carbono fixado no solo. A relação, na verdade então, passa a
ser ganha-ganha-ganha. Inclusive, um dos
trabalhos mais interessantes publicados ano passado por pesquisadores escoceses
e brasileiros (e que foi capa da prestigiosa Nature Climate Change) mostrou que
desestimular o pecuarista faria inverter a direção, com o solo passando de
dreno de C para emissor, aumentando a emissão de GEE. Mais informações sobre
isso no link de um texto escrito por mim nesse mesmo espaço em Janeiro no
rodapé[1].
O interessante é que importantes organizações não governamentais (ONGs)
entenderam isso e tem programas para ajudar o pecuarista a intensificar sua
produção. Para finalizar, lembre ao Cunha que ele pode ajudar a combater o AG
na cidade mesmo com atitudes simples: 1) Andar mais a pé ou usar mais transporte
público ou solidário; 2) Trocar transporte motorizado por bicicleta; 3)
Economizar energia; 4) Encher o tanque com álcool em vez de gasolina; 5)
Reciclar seu lixo; 6) Evitar o desperdício (jogar menos comida fora, consertar
o bem em vez de jogar fora, etc.).
4)
A sobrinha com desejos de se tornar vegana: A Clarinha sempre foi um amor de menina, muito
meiga e sonhadora. Nada mais revelador da sua sensibilidade do que sua "luta" para
que os adultos levassem a sério que seus bichos de pelúcia tinham alma. Eis que
agora, no reencontro com essa jovem adulta que acabou de tirar a habilitação, ela
olha para você com reprovação e diz: "...Tio, como você pode trabalhar matando
animais para viver?". Na sequência ela revela estar seriamente considerando
virar vegana. Para quem não sabe
vegano é um vegetariano radical. O vegano não come nenhum alimento que tenha
qualquer ingrediente de origem animal. Uma bala de mel, por exemplo, para a
maioria das correntes veganas não deve ser comida! Primeira dica: Fuja da
reação padrão que é a de recriminar a escolha de que a pessoa vai comer.
Colocar a liberdade de escolha acima das nossas ideologias em situações como
hábitos alimentares é um excelente exercício de sociabilidade e, acredite,
aumenta bem a chance que seus argumentos sejam considerados. Outro
encaminhamento dado a esta questão é afirmar que a dieta vegana (ou
vegetariana) vai deixá-la subnutrida. Apesar de haver grandes chances de isso
ser verdade, é possível ter uma dieta balanceada sem produtos de origem animal.
É apenas muito mais difícil. Prova disso é que muitas mulheres vegetarianas
antes da menopausa, quando assistidas por nutricionistas, tomam pílulas de
ferro para complementar esse mineral. Além de ferro, a carne vermelha é responsável
por grande parte do atendimento de vitaminas do complexo B, zinco, cobre e,
claro, proteína de alta qualidade, com todas as unidades formadoras das
proteínas (aminoácidos) que precisamos. No caso do vegano, além da dificuldade
em balancear a dieta, há o desafio de saber se a comida tem ou não produtos de
origem animal. Aí é fácil diferenciar o vegano novato: Ele pergunta a quem fez
quais os ingredientes foram usados, examina a lista de componentes nas
embalagens mesmo com as mais miúdas das letras e recusa a bala de mel. O vegano
, digamos, "sênior" já se deixa enganar, presume que determinada marca não têm
ingredientes de origem animal (para não ter que ler o rótulo e descobrir que
tem) e aceita a bala de mel. Obviamente que essas limitações não ajudam muito
na vida social, o que também é uma realidade para vegetarianos, ainda que num
grau bem mais baixo. Até agora, contudo, apenas defendemos o direito da pessoa
comer o que bem entender e que dietas baseadas em plantas são bem mais
complicadas de operacionalizar. Há mais o que argumentar em prol de fazer uma
jovem ter uma vida mais fácil, prazerosa e saudável? Um ponto importante neste
caso é que a escolha vegetariana proporciona uma sensação de superioridade
moral por sacrificar seu desejo em comer carne em prol de não matar um animal.
Essa decisão emocional faz a pessoa ser resistente a argumentos mais racionais.
Nem sempre é fácil para ela perceber que esta questão moral é bem relativizada
quanto você coloca o ser humano em seu devido lugar: apenas mais um ser vivo na
teia da vida. Seres vivos, de todos os reinos, são alimentos uns dos outros,
não sendo razoável julgar o pássaro que pesca o peixe, o gato que come o rato e
o jacaré que come a capivara, etc.. Por que seria, então, justo julgar o Homo sapiens que come boizinho que criou?
Também é bom lembrar que vegetarianos e veganos não se alimentam de pedra, mas
de seres vivos que morrem para que eles possam viver. Dirão "...mas alfaces não
sentem!" para o quê pergunto: "Será?". É
importante lembrar também que os animais de criação só existem por ter o fim de
ser tornarem alimento, matéria prima para uma infinidade de produtos e força de
trabalho. Dizemos isso de forma
alguma para dar-lhes menos importância, mas para frisar que eles não existiriam
se não fosse por isso. Por fim, um
ponto que faz com que muitas Clarinhas por aí se sintam tentadas a deixarem de
comer produtos de origem animal é porque eles acreditam que o animal seja mal
tratado durante sua vida na fazenda. Isso ocorre em boa parte pela propaganda
negativa feita por ativistas anti-indústria animal, que mostram as piores cenas
dos piores produtores, levando a crença que elas representam a realidade. É
necessário explicar que o maior interessado em prover o animal com bem estar é
o próprio produtor que sabe ser esse, também, um fator de aumento de produção.
Para finalizar, alguns
pontos positivos que até quem é da área, as vezes, não tem a exata dimensão e que podem ajudar no contexto dos debates das
festas de fim de ano. Você sabia:
- Que menos de 10% dos animais abatidos no Brasil
vem de confinamentos e que estes duram apenas entre 70-100 dias, ou seja, o
gado brasileiro passa, em média, 99% da sua vida em seu ambiente natural?
- Que além da quase
totalidade da carne produzida no Brasil vir das pastagens, há baixíssimo uso de
insumos, sendo um alimento muito perto do conceito de orgânico sem precisar de
um protocolo especial para isso ou certificação?
- Que, segundo um
trabalho britânico, uma tonelada de carne produzida no Reino Unido usa 2,5
vezes mais pesticidas, gasta cinco vezes mais energia e tem seis vezes mais
potencial de acidificação do que a mesma tonelada de carne produzida no Brasil?
- Que a carne
brasileira é uma das mais "limpas" do mundo conforme atestado pelo fato de
exportarmos para centenas de países e praticamente não haver alertas para
ocorrência de resíduos, mesmo com vários deles possuindo elevado grau de
controle? Que além desse aval, temos o "Plano Nacional de Controle de Resíduos
e Contaminantes" do Ministério de Agricultura, cujos resultados são públicos e
comprovam que a nossa carne bovina é um alimento seguro?
- Que o Brasil é o
único grande exportador de carne que não utiliza hormônios na produção de
carne?
- Que a maior parte da
produção se concentra em áreas que não representam ameaça a Amazônia e que
somos o país com um dos maiores remanescentes florestais do mundo?
É isso! Esperando que possa ser útil, aproveito para desejar feliz Natal e ótimo 2017
para as Tias Ofélias, para os Júniores,
para os Cunhas e para a Clarinhas espalhadas pelo Brasil, mas, principalmente,
para todos aqueles que com seu incansável trabalho ajudam a alimentar o Brasil
e o Mundo!
[1] https://www.scotconsultoria.com.br/noticias/artigos/42057/carne-bovina-artificial-comidas-impossiveis-e-o-futuro-da-pecuaria.htm