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O PROF. EDMAR J. KIEHL QUE CONHECI (Adilson Paschoal; F67)
18/02/2018 - Por adilson dias paschoalAtenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.
O PROF. EDMAR J. KIEHL QUE CONHECI.
Parte 1. Quando o mal para um reverte em bem para a ciência.
Adilson D. Paschoal.
Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, USP.
ESALQ. Início dos anos de 1960. Ala sul do Pavilhão de Agricultura. Sentado à mesa em seu gabinete, o Prof. Guido Ranzani, Catedrático da 13a Cadeira, Solos e Agrotecnia, solicita ao Prof. Edmar José Kiehl, Professor Assistente (Livre-Docente) da mesma cadeira, que venha até ele para uma importante comunicação. Ranzani, que fora assistente auxiliar da 2a Cadeira (Química Agrícola), tornara-se catedrático em 1957, em concurso para a 13a Cadeira.
— Kiehl, diz ele. — Você sabe perfeitamente que a Escola está passando por grandes reformas: as cadeiras não mais existirão, vindo em seus lugares os departamentos. No nosso caso, a 13a Cadeira irá se juntar à 18a Cadeira (Geologia e Mineralogia) para formar o Departamento de Solos e Geologia. Está ciente disso, não?
— Sim, responde Kiehl, um tanto perturbado e curioso sobre o desfecho que tal conversa teria.
— Pois bem, continua o catedrático. Para concluir o programa do novo departamento que estou organizando e o corpo docente que irá integrá-lo só restou uma matéria que ninguém quis até agora. Se estiver interessado, poderei indicá-lo...
Surpreso, refletindo por alguns instantes sobre o poder dos catedráticos em definir o destino de suas cátedras e de seus subordinados, conforme melhor lhes aprouvesse, afigurava-se-lhe no rosto visível preocupação, pois há mais de quinze anos ingressara na ESALQ, primeiro na Química Agrícola, depois na Agricultura Geral (Solos e Agrotecnia), tendo desde então realizado pesquisas com adubos verdes, motivo de tese de livre docência defendida em 1960. O que mudaria? Por fim, ele responde:
— E que matéria é essa que ninguém quis, professor?
— Adubo orgânico, responde Ranzani. E depois de breve pausa: — Mas é claro que isto só ocorrerá depois que a Congregação e a USP aprovarem as reformas; até lá, você pode continuar com seus trabalhos habituais.
Sem esboçar sentimento que denotasse aprovação ou decepção, mas de alguma forma aliviado com a proposta, uma vez que já vinha ensinando a matéria nas aulas de Agricultura Prática, do primeiro ano, e publicara um trabalho sobre composto em 1957, responde, com convicção, Kiehl:
— Está bem. Eu aceito.
E assim foi que o Prof. Edmar J. Kiehl passou a trabalhar mais intensamente com matéria orgânica, como se verá.
Entrementes, um fato inusitado acontece em sua vida. A Cadeira de Química Agrícola era, seguramente, uma das mais antigas e tradicionais da Escola. Dela fora catedrático, por longo período, o Prof. José de Mello Moraes, um dos homens mais capacitados e influentes da instituição, tendo sido reitor da USP em 1954. Com seu falecimento em 1956, a cátedra foi declarada vaga. Para o seu preenchimento efetivo, abriu-se concurso, vencido pelo Prof. Tufi Coury em 1957. Com o passamento deste em 1965, ficava novamente vaga a 2a Cadeira; mas havia um problema: os assistentes não eram ainda professores associados. Foi quando Kiehl, que tinha essa titulação na 13a Cadeira, vislumbra a possibilidade de tornar-se catedrático justamente na cadeira em que ingressara na ESALQ, em 1947. Pesava nessa decisão também o fato de que talvez não o conseguisse na cadeira em que se achava lotado; experiência administrativa ele havia adquirido quando em duas ocasiões (em novembro de 1965 e em abril de 1966) substituiu, por impedimento, o Catedrático Guido Ranzani. Em dezembro de 1965 tornara- se Professor de Disciplina em Gênese e Morfologia de Solos.
Em um ano prepara sua tese: Adubação e irrigação por capilaridade na experimentação de vasos. A banca se reúne em 1966 para avaliar o trabalho e o currículo, ao mesmo tempo em que avalia candidatos para professor associado. Na hora de decidir, os membros da banca apresentam suas notas; há necessidade da aprovação por todos eles, o que não acontece. Argumenta-se que, fora a tese apresentada, o candidato publicara apenas um trabalho na área especifica da Cadeira, e isto tinha sido em 1951 (Adubos fosfatados); o que fizera depois se enquadrava na área da 13a Cadeira, Agricultura Geral: composto, adubos verdes e rotação de culturas. Nesse sentido, afirmava-se, candidatos a professor associado para a mesma cátedra haviam produzido muito mais do que ele, principalmente na área de adubos minerais, adubação e fertilidade do solo, áreas tidas como prioritárias. O resultado tarda a aparecer; muitos da assistência vão embora. Um professor da 13a Cadeira, que ainda permanecia no local da defesa da tese, é chamado pelo presidente da banca para dar a desagradável notícia ao candidato; tal procedimento esdrúxulo contrariava a formalidade com que eram tratados os postulantes ao cargo mais elevado da universidade.
Ao receber a inesperada comunicação, extra-oficial, o professor Kiehl só teve força para dizer: — “Acabaram com a minha carreira.” Notícias desencontradas espalham-se rapidamente; segundo uns, o membro externo da banca que o reprovara fizera-o por vingança, pois fora duramente arguido pelo professor quando defendia tese na pós-graduação da ESALQ; outros afirmavam que o referido examinador fora propositalmente incluído na banca, pois a não aprovação do candidato criaria oportunidade para os assistentes da 2a Cadeira disputarem a vaga, que, pensava-se, pertencia, de direito, à Cadeira de Química Agrícola.
Mas havia outra questão. Alguém que procurava demonstrar a viabilidade dos adubos verdes no fornecimento de nitrogênio e outros nutrientes para as culturas, e matéria orgânica para o solo, certamente estava em rota de colisão com a filosofia da cadeira pela qual fora criada: a Química Agrícola. Não era de se estranhar, portanto, os comentários que se faziam então, parecidos com a fábula do lobo e o cordeiro, que aqui apresento com adaptações fáceis de serem entendidas. “Estava um lobo à beira de um rio a beber de uma água rica em minerais, quando, a jusante, um cordeiro se aproxima para também mitigar a sede. — Como ousas, diz o lobo, sujar com matéria orgânica o meu rio e a água que estou bebendo! — Como posso eu, responde o cordeiro, estar sujando a água que bebes se ela corre de ti para mim! — Pouco me importa saber, retruca o lobo, pois pela posição que ocupo neste Reino de poucos mandantes sou mais poderoso do que você e, por isso, irei devorá-lo.” Para não parecer tão cruel, o lobo usa do estratagema de, discretamente, colocar outro lobo para executar a espúria missão.
O infortúnio por que passou o professor Kiehl teve consequências profundas não só para si, como também para a própria instituição. Através da Portaria no 64, de 26 de junho de 1964, o reitor da USP havia aprovado o novo Regulamento da ESALQ, que previa a departamentalização, criando, entre outros, o Departamento de Solos e Geologia (pela fusão das Cadeiras de Solo e Agrotecnia e de Geologia e Mineralogia), tendo como chefe o Prof. Eduardo A. Salgado, e o Departamento de Química (pela fusão das Cadeiras de Química Agrícola, de Química Analítica e de Química Orgânica e Química Biológica), tendo como chefe o Prof. Renato A. Catani. A implementação dos departamentos ocorreria mais tarde, em 1970. Mas, ao contrário das outras, a Cadeira de Química Agrícola continuava acéfala. Para a vaga não preenchida três candidatos se inscrevem em dezembro de 1966, todos eles professores associados da 2a Cadeira. Porém o concurso não se realiza. A solução é encontrada com a transferência da Química Agrícola do Departamento de Química para o Departamento de Solos e Geologia, que, assim, passa a abrigar três cátedras (13a, 18a e 2a). A trama, se de fato houve, como acreditavam alguns, acabou sendo um tiro que saiu pela culatra. Tal inusitado arranjo foi aprovado pela USP em 15 de janeiro de 1970, através da Portaria no 1023, que implantou a departamentalização na ESALQ. O concurso para a vaga de catedrático da ex-cadeira de Química Agrícola só se realizaria oito anos depois, em 1974, porém com a condição regulamentar de que quem vencesse não mais seria professor catedrático e, sim, professor titular.
O tempo é a melhor testemunha, segundo se diz, mostrando de que lado está a verdade. Ao contrário do que pensara o Prof. Kiehl, o mal que lhe foi feito não acabara com sua carreira; pelo contrário, revertera-se em bem para si, para a instituição e para a ciência, pois na década seguinte, dos anos 70, passou a produzir dezenas de trabalhos importantíssimos sobre matéria orgânica, compostagem, adubos orgânicos e organominerais, ajudando alavancar um modelo novo de agricultura, como se verá no próximo artigo.
Adilson D. Paschoal é professor titular, Professor Sênior da ESALQ,USP.
Referências.
ESALQ-USP. ESALQ 75 anos. Livro comemorativo do 75o aniversário da Escola Superior
de Agricultura “Luiz de Queiroz”, da Universidade de São Paulo. Piracicaba, 1976. 535p.
MARCOS, Z. Z. Comunicação pessoal de alguns tópicos.
PASCHOAL, A.D. Era assim naqueles dias. O País e a agricultura nos anos 1950 e 1960. Em, 50 anos. Da agricultura tradicional ao agronegócio. Marlene Simarelli (organizadora). Piracicaba, FEALQ, 2017, 300p.